“Haitiano confirma abuso sexual de militares uruguaios da ONU
O haitiano Johnny Jean, 18, que aparece em um vídeo divulgado na internet sendo agredido por marinheiros uruguaios da força de paz da ONU no Haiti, disse a rádios locais que foi sodomizado (…)
No vídeo, Jean aparece com as calças abaixadas enquanto marinheiros uruguaios simulam um ato sexual. A gravação foi feita no dia 28 de julho dentro da base da Marinha uruguaia em Port Salut, por meio de um celular.
‘Com relação ao que sai na filmagem, não há naquele momento a consumação [do ato sexual], mas houve um abuso e uma agressão física’, disse o general Luiz Eduardo Ramos Pereira, comandante militar da ONU no Haiti. A ONU não descarta a hipótese de ele ter sido abusado em outras ocasiões.
Já ativistas da organização Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos dizem que um exame médico feito no rapaz em 30 de agosto constatou ‘lacerações’ de dois milímetros em seu ânus”
Pela legislação uruguaia, trata-se de um atentado violento ao pudor. Isso porque o artigo 273 do Código Penal uruguaio diz claramente que esse crime ocorre "ainda que não haja consumação”. Como já não há o crime de atentado violento ao pudor no Brasil (havia até 2009), traduzimos usando o equivalente brasileiro: estupro.
Mas vamos imaginar que o crime houvesse ocorrido no Brasil.
Tanto o homem quanto a mulher podem ser vítimas de estupro em nossa lei. Logo, o personagem da matéria acima pode ter sido estuprado. Mas foi isso que aconteceu?
Para haver o estupro é necessário que haja algum tipo de violência sexual (pentração). No caso, pelo que a ONU diz, não houve consumação de um ato sexual, ou seja, não houve penetração (no caso, do ânus da vítima). Eles 'apenas' filmaram uma simulação, segundo a entidade.
Se a versão da ONU está correta, também não houve tentativa de estupro. Isso porque a tentativa só existe quando a consumação não ocorre por alguma razão alheia à vontade do criminoso. No caso da matéria acima, os criminosos filmaram e simularam o ato sexual, e depois foram para casa/caserna. Eles não deixaram de estuprar porque alguém os interrompeu, porque a vítima escapou, porque quem tentou estuprar não conseguiu ter ereção ou por qualquer outro motivo alheio à vontade do grupo criminoso. Logo, eles interromperam por vontade própria. Se a não consumação ocorre por vontade própria, não se trata de tentativa.
Nesse caso, duas hipóteses podem ter ocorrido: ou eles queriam estuprar (no caso, queriam penetrar o ânus da vítima) mas desistiram, ou eles ‘só’ queriam filmar o que de fato filmaram e o estupro nunca esteve nos planos dos criminosos.
Se eles queriam estuprar e desistiram por vontade própria, trata-se do que em direito é chamado de desistência voluntária. Desistência voluntária ocorre quando o criminoso voluntariamente desiste de prosseguir na execução do crime. É o caso do criminoso que ia matar e resolveu poupar a vítima ou o ladrão que chegou a entrar na casa mas desistiu de furtar os objetos. Nesses casos, o criminoso só responde pelos atos criminosos cometidos até o momento de sua desistência. Por exemplo, pela posse ilegal de arma ou pela violação de domicílio.
Aliás, a desistência voluntária é irmã siamesa do que os juristas chamam de arrependimento eficaz. No arrependimento eficaz o criminoso comete o crime, mas evita que o resultado seja produzido. Por exemplo, ele põe fogo na sala na qual a vítima está amarrada mas antes que a vítima morra ele decide salvá-la. Ela não morreu porque ele a salvou. Para a lei, não há consumação. E não é uma tentativa já que ela não morreu porque ele a salvou (se os bombeiros a tivessem salvo seria uma tentativa de homicídio).
Assim como na desistência voluntária, no arrependimento eficaz o criminoso só responde pelo que já fez (por exemplo, por ter colocado fogo no imóvel ou pela lesão corporal da vítima se ela sofreu queimaduras).
Mas vamos voltar à matéria acima.
A segunda hipótese é que eles nunca tiveram a intenção de estuprar. Eles ‘só’ queriam fazer o que de fato fizeram: filmar a vítima nua enquanto simulavam o ato sexual sem de fato consumá-lo.
Aqui podemos ter duas leituras diferentes. A lei diz que estupro é praticar um "ato libidinoso" contra a vontade da vítima. Mas o que é ‘libidinoso’? Segundo o dicionário Michaelis: “1 - Voluptuoso, lascivo. 2 - Que sente vivos desejos sensuais; lúbrico, concupiscente. 3 - Que pertence à libido. Indivíduo dissoluto, lascivo, voluptuoso”. E segundo o Houaiss: “1 - relativo ao prazer ou ao apetite sexual; que é por eles caracterizado ou que os sugere; voluptuoso, sensual. 2 - que ou aquele que tem desejos sexuais intensos e constantes; devasso”. Em nenhum dos dois casos os dicionários dizem que é um ato sexual, eles apenas fazem referência a atos de natureza sexual. Ora, o que aconteceu no vídeo não foi uma penetração, mas certamente foi de natureza sexual. Se usarmos essa interpretação mais severa e levarmos ao pé da letra o que os dicionários dizem, podemos chegar à conclusão de que houve estupro.
Mas não é essa a interpretação de grande parte dos juristas brasileiros. Para eles, estupro precisa ter penetração e isso não aconteceu no vídeo, segundo a ONU. O que ocorreu no vídeo, então, poderia ser um ato obsceno além de um constrangimento ilegal. O constrangimento ilegal acontece quando forçamos a vítima “mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”. Se a vítima da matéria acima foi forçada a ficar nua e a ser filmada, ela foi forçada a fazer algo que a lei não a obriga a fazer, e isso é constrangimento ilegal. Já ficar nu e simular um ato sexual em um local ao qual o público (várias pessoas) tenham acesso, como um quartel, é um ato obsceno.
Por outro lado, se a ONG consultada no último parágrafo da matéria está correta, não há dúvida: houve penetração e, portanto, estupro. Não importa se houve ou não laceração (rompimento da pele) do ânus ou se houve penetração total ou parcial: se houve qualquer tipo de penetração contra a vontade da vítima, houve estupro.
Por fim, vale lembrar que tudo isso só é relevante se a vítima foi forçada ou não consentiu. Se ele consentiu voluntariamente, é maior (a matéria diz que ele tem 18 anos) e sua vontade não estava alterada (bêbado, deficiente mental, em coma etc), ele pode fazer sexo com quem e com quantos quiser, como quiser, deixar-se filmar etc.